A luta e o talento de Erica Alves: entrevista e Podcast exclusivos


Por: Gabriela Loschi
Foto: Felipe Raizer

* Entrevista da segunda capa da House Mag impressa #45, com 20 mulheres da cena brasileira.

Nos últimos dois anos uma nova e poderosa mulher apareceu na cena brasileira e chamou a atenção pelo envolvimento e talento: a multifacetada Erica Alves. Sua história na música, porém, começou ainda na infância, como pianista. Dos 4 aos 13 anos ela viveu nos Estados Unidos e, obcecada por música erudita, foi autodidata até fazer aulas particulares. Tocava peças de Beethoven e Mozart, posteriormente se interessou pelo canto e foi solista do coral do colégio. Na faculdade de letras em Niterói, criou a banda de rock Motherfunk que se manteve ativa por quatro anos. Enquanto lê a entrevista exclusiva com esta mulher maravilhosa, ouça o Podcast que Érica preparou exclusivamente para a HM Series e conheça melhor seu som:
 

 

HOUSE MAG – Conte um pouco sobre a sua caminhada: qual é a sua história na música, até chegar na música eletrônica?

ÉRICA ALVES – Sou pianista desde criança, obcecada por música erudita, mas não queria ser reprodutora de partituras. Queria compor. Me interessei pelo canto e, quando voltei pro Brasil em 2000, herdei um violão do meu avô e fui aprendendo. Compus umas 60 músicas dos 13 aos 17. Com 19 criei a banda Motherfunk com três amigos. Quando conheci o guitarrista, Augusto Feres, ele estudava no Conservatório Brasileiro de Música no Rio e eu ia pra lá assistir aulas. Lá eu conheci Zopelar, que estava descobrindo a música eletrônica e eu querendo escoar minhas produções em inglês. Fizemos demos e gostei tanto que transitei do rock pro eletrônico até me juntar a ele e Davis no The Drone Lovers, em 2010, meu primeiro projeto de música eletrônica. O TDL foi primordial. Eu já estava quase desistindo da carreira musical no Rio, estava casada, trabalhando como professora, com emprego estável. Sem o convite deles, não teria me mudado para São Paulo e aprendido os caminhos, não teria chegado nem perto, ou pelo menos demoraria muito mais.

HM – Ao decidir ter a música eletrônica como seu principal foco, quais foram os principais desafios enfrentados?

EA – Muitos. Era algo novo. Cantar para uma pista de dança requer outra maneira de pensar a função do vocal e da figura da cantora. Levei um tempo para entender que a cabine do DJ é uma semi-cena, você pode ficar ali sem a pretensão de “dar um show”. Você não precisa cantar em todas as faixas, até melhor se deixar bastante espaço sem vocal e cantar poucas vezes, para que se torne um momento especial do live, por exemplo. Fora o tempo que levei para aprender a mexer nos equipamentos, nos sintetizadores com qualidade. Outra coisa é a forma de se colocar na cena. É um meio muito centrado em indivíduos, e quis me tornar produtora também. Levou uns 5 anos para me sentir em controle da minha música.

HM – Quais são as suas principais influências artísticas?

EA – Sou muito fã de krautrock, música progressiva, Radiohead, de toda a onda trip-hop, cantoras divas como Whitney Houston, da revolução musical do house e techno de Chicago e Detroit, de movimentos da música brasileira como Tropicália e Bossa Nova. Sempre fui fissurada em cenas locais e o underground, e sempre aprendi muito com meus colegas e amigos nas cenas que atuo.Tenho me interessado bastante ultimamente por acid house e electro boogie, e também pelo sempre amado techno.

HM – Como alguém que não está há tanto tempo na indústria da música eletrônica, mas já realizou diversos projetos relevantes, como você vê a cena brasileira hoje e como o seu olhar foi se moldando ao longo deste tempo?

EA – Estou encontrando uma cena underground cada vez maior, mais unida e solidária, criando um movimento de resistência clubber libertária diante de um mainstream eletrônico que cresce e está se tornando mais competitivo. Vejo como muito positivo o boom do eletrônico mais comercial porque isso traz novos ouvintes e amantes, mas também sou crítica desse fenômeno por não trazer a proposta de propagar a história, debater questões sociais e nem manter o propósito do nosso movimento que é de quebra de barreiras de classe, gênero, sexualidade e raça em prol da união pela música do futuro, tecnológica. A música eletrônica de baile nasce num contexto de música negra e LGBT nas grandes cidades norte-americanas, muito mais próxima da história dos bailes funks no Rio, por exemplo, mas essa narrativa vem sendo apagada e apropriada por uma forma segregacionista de produção cultural: festivais e clubes caros, elitizados e hegemonizados por produtores e DJs majoritariamente masculinos, brancos e de classe social elevada e com foco nas versões europeias desses ritmos.

HM –  Sobre a luta pela igualdade, uma bandeira que você levanta diariamente, quais foram as situações em que você sentiu o machismo na pele?

EA – Inúmeras. Acho que a situação mais grave é a disparidade de cachê. Sei de colegas com menos experiência e “nome” que recebem cachês maiores na mesma festa. Percebo também uma certa solidão – mulheres na música não costumam ter gente pronta pra te fortalecer, te ajudar mesmo com sua carreira e seu bem-estar. Pelo contrário, temos que nadar contra a corrente MESMO. Não temos filas de groupies, nem gente se dispondo a cuidar da gente, a muitas vezes temos que enfrentar nossos próprios companheiros e famílias para conquistar nosso direito de trabalhar na noite. A misoginia da nossa sociedade é tão grande que o sucesso da mulher a isola da comunidade em vez de aproximá-la. Por isso faço questão de me conectar com outras mulheres no meio e formar novas produtoras. A gente precisa apoiar umas às outras.

HM – Você ofereceu workshops de Synths que visam integrar as mulheres aos sons eletrônicos. Como foi?

EA – Foram umas dez edições da oficina Synth Gênero em diversos lugares: São Paulo, Rio, São Carlos, Campinas, Curitiba, Berlim e agora Porto Alegre e Canadá. Pra mim foi muito natural porque não consigo ficar só no discurso quando levanto uma bandeira. Precisamos intervir nas bases. As mulheres que buscam a oficina são motivadas, mas ainda precisam de uma figura que as represente, que vai dar aquele empurrãozinho. Todos nós, homens e mulheres precisamos que alguém chegue e fale que a gente pode, que a gente tem capacidade.

HM – Ano passado você passou uma temporada em Berlim, onde também realizou o workshop. Como foi esta experiência lá?

EA – Foi fantástica! Berlim, além da meca do techno, é uma cidade referência para artistas engajados do mundo inteiro. Fui justamente para conhecer como essa mistura funciona na prática. Não planejava fazer a oficina de início, mas a receptividade do meu trabalho foi tão boa quando toquei na Voodoohop de Berlim que e as mulheres que estavam lá se mobilizaram para me ajudar a organizar a atividade, que aconteceu numa ocupação anarco-punk transfeminista em Friedrichshain, onde o movimento de ocupação pós-Queda do Muro ainda sobrevive às duras penas.

Pra mim foi uma experiência que ampliou muito minha visão de mundo e minha noção de organização. As comunidades LGBT, feministas e de imigrantes são muito unidas e solidárias e estão a todo tempo se colocando e propondo novas formas de fazer arte e intervir na cidade, de dia e de noite. Fora o circuito de clubes e festas, e a experiência da cidade em si, que é simplesmente alucinante, principalmente no verão. Voltei bastante inspirada e energizada para o Brasil com essa nova experiência.

HM – Considero este teu trabalho de inclusão de gêneros através dos workshops algo de extrema importância, até porque, o número de mulheres que se matriculam em aulas tradicionais de discotecagem e produção no Brasil ainda é muito inferior ao número de homens. Por que você acha ainda hoje há está diferença entre mulheres e homens que se interessam pelas aulas?

EA – As oficinas de produção musical que vejo por aí se utilizam de um marketing muito orientado para o público masculino quase que por default. Tudo que é de educação técnica parece que não foi feito pensando em inclusão de mulheres. Existe ainda essa atribuição automática do pronome masculino para se falar em engenheiros de som, DJs e produtores e isso acaba naturalizando o sentimento de que essas profissões não são para mulheres. Outra dificuldade é que um ambiente dominado por homens tende a ser intimidador para mulheres, rola muita piada machista nesses ambiente, muita competição também. Quando você é a única ou uma das únicas mulheres na sala, a forma que somos socializadas faz com que a gente reaja geralmente se calando, se inibindo, com vergonha de perguntar, tirar dúvidas, e muitas vezes a gente acaba se retirando do ambiente por falta de apoio mesmo. É aquela coisa, se um homem tiver dúvida e/ou errar, é visto como parte do processo de aprendizagem, se for uma mulher, ela ainda precisa lidar com essa atribuição de sua dificuldade com seu gênero.

HM – De um modo geral, como você acredita que todos da cena poderiam trabalhar para fortalecer ainda mais as mulheres na indústria?

EA – A verdadeira igualdade só será atingida com regulamentação do nosso setor partindo dos artistas e outros trabalhadores da noite – de quem precisa vender sua mão-de-obra para o ganha-pão. Vejo como um passo muito importante a criação do Women’s Music Event, acho que com esse tipo de engajamento a gente consegue muito mais vitórias.

HM – Vamos falar sobre o seu projeto Baphyphyna. Qual é o conceito dele e quais são os seus objetivos?

EA – Baphyphyna foi criada em 2013, primeiro como uma editora e gravadora de arte experimental, com cunho político já bem forte. Começamos com a publicação de zines audiovisuais como #LOVYBIBLEBUBU2

e Manifesto Baphywave. Esse ano resolvi expandir o conceito para uma festa com foco em dar visibilidade para artistas mulheres e LGBTs. Nossa primeira edição foi no dia 02/02 n’O Lourdes em São Paulo, como parte da programação do Festival SÊLA.

O objetivo é se tornar um suporte mesmo para nossas criações, virar um selo, um programa de rádio e tudo mais.

HM – Fale sobre o desenvolvimento e as inspirações do seu novo álbum que acabou de ser lançado, como foi o processo criativo?

EA – Meu álbum novo Beautiful foi escrito em 2014 e gravado em 2015 e agora finalmente saiu essa semana. É um álbum conceitual e uma continuação do meu trabalho com synthpop, na linha do To Believe (MAWW Records, 2013). Gravei durante a residência Pulso de 2015 na Red Bull Station, mixei lá também com Rodrigo Coelho e masterizei agora em janeiro com Bruno Marcus da Tomba Records em Niterói.

O álbum narra nossa contemporaneidade e passa por temas de liberdade, da beleza da natureza nua e crua, e um pouco da minha filosofia sobre como as grandes narrativas históricas influenciam na vida privada e afetiva. É o trabalho que mais tenho orgulho de apresentar até hoje por ser minha estreia também como produtora.

* Ouça o álbum completo aqui e compre aqui.

HM – Quais são os seus planos futuros?

EA – Divulgar meu álbum e continuar com minha agenda de apresentações do meu live e da oficina Synth Gênero. Quero conseguir levar minha mensagem para todo o Brasil e o mundo inteiro! :D

 

 

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